12.5.06

Rato

Duas e meia da manhã. A meia-luz do quarto dá a sensação de que só existe Damião no mundo. O silêncio reina insolente pela rua. Asfalto molhado. Bueiro entupido. Somente um rato que passeia pelos entulhos, à procura do que restou do dia anterior. Damião, já acostumado com a sua insônia, levanta-se da cama e vai até a janela. De lá, ele vê rato. Corre para a cozinha e pega um pedaço de pão velho e mofado que estava em cima da mesa. Não sabe o porquê, mas alimentar o rato lhe dá uma certa sensação de satisfação e alegria. Damião pensa no quanto esse bicho tem em comum com ele. Vidas noturnas, verdadeiros amantes da escuridão.
Damião volta para cama, que agora parece mais dura do que nunca. O quarto é quente, a noite é fria. Liga o rádio, mas nada parece soar bem aos seus ouvidos, nem mesmo a sua estação preferida, que há tempos não ouvia. Pensa em como as coisas mudam de figura. Sabe que já foi feliz um dia. Já sentiu o seu coração bater mais forte. Um dia. Hoje, é apenas um passante pela multidão. Sem estímulo, sem cor. Não pensa mais nos sofrimentos dos outros. Fez questão de esquecer os seus. Assim como a dor lhe ensinou a gemer, a pobreza lhe ensinou o egoísmo.
Damião teve uma infância de alegrias raras, sorrisos tímidos e invisíveis, de canto de boca. Quando não está em serviço, o lençol amarelo, manchado e desbotado é o seu companheiro. Isso sem tirar as putas que de vez em quando o visitam com a sua indestrutível prepotência e estupidez.
Damião já foi capaz de amar. Uma vez esteve apaixonado. Ela era linda, e a inocência que brilhava em seus olhos o conquistou. E são em noites como essa que Damião sente mais a sua falta. Falta dos beijos, dos abraços, do corpo quente que inebria e entontece. Somente ela foi capaz de fazê-lo pensar que a vida tem seus momentos inesquecíveis, que a vida pode ser algo realmente interessante. Mas, como tudo que passa pelo seu caminho, Damião destruiu. O mais engraçado é que ele fez isso com a mesma habilidade de quando saiu de casa, aos dezesseis anos, totalmente despercebido pelo pai e pela mãe.
Agora as horas passam e tudo continua o mesmo. Algum barulho na cozinha faz Damião pular da cama sobressaltado. Corre, passa pelo banheiro mal-cheiroso e chega a tempo de dar de cara com um outro rato cinza, muito maior que o anterior, bem em cima de sua mesa. Damião não se importa com isso. Na verdade ele se preocupa em não fazer o mínimo barulho ao voltar para o quarto. Dessa vez, sente que não está mais só e adormece.
Ao acordar, olha em direção à janela. Os primeiros raios de sol invadem quarto adentro. Veste uma blusa qualquer e uma calça jeans rasgada que estava no chão. Calça o chinelo havaianas e sai.
Na rua, a claridade cega seus olhos e dá uma sensação de leveza. Caminha calmamente em direção à banca de jornal e procura pelas manchetes do dia. “Crime premeditado. Deputado assassinado cruelmente quando saía da Câmara”.
Damião dá um sorriso tímido e invisível, de canto de boca, igual ao que costumava dar quando era apenas uma criança.