29.6.06

Modernidade com Acidade

Virtual sem igual

Deletar sem apagar

Site sem insight


Minuto sem luto

Segundo sem além-mundo

Horda sem hora


Amor sem valor

Braços sem abraços

Sexo sem nexo


Arte sem desarme

Publicidade sem verdade

Texto sem contexto


Ditadura sem abaladura

Discurso sem excurso

Democracia sem burrocracia


Dinheiro sem freio

Cifrões sem razões

Luxúria sem cúria


Pecado sem culpado

Estigma sem dogma

Divino sem celestino


Morte sem aporte

Vida sem desmedida

Partida sem despedida

27.6.06

O Sorriso de Luiza

Cinza. Dia nublado. Ele anda pela rua sem rumo, numa andança em que dá voltas e mais voltas, num conflito entre as faixas de trânsito e a velocidade dos carros. A buzina, como antes era de praxe, já não acelera mais o seu coração. Os carros já não lhe parecem tão grandes assim. São anos de rua, anos de idas e vindas, olhares e passagens. Conheceu novos lugares, cruzou com muitas cadelas de rua e perdeu a conta dos genitores que deixou pelo caminho. Também, quem haveria de querer um pai assim? Que num momento de puro instinto, trepou e nunca fez amor.

Sim, ele já teve um dia os seus momentos de afagos, aquela comida gostosa que vem da mão de uma pessoa caridosa. Mas hoje em dia os restos de comida são raros, e a fome é freqüente.

Foi-se o tempo. Foi-se o tempo em que se arriscava pela noite. Até porque os seus passos já não possuem mais o vigor de antes, que o fazia correr pelas ruas, totalmente ensandecido pela efemeridade que só tem a liberdade. Liberdade de ir e vir, de chegar e de partir.

Perdeu a paixão pela noite, e o escuro não mais lhe serve como proteção. O olhar perspicaz o abandonou, e daí vieram os fantasmas, coisas de uma visão turva, que teima em lhe fazer tremer pelos bueiros onde costuma dormir.

Animal! Não pensa, não trabalha, não finge! Mas de que vale a sinceridade sem alguém para admirá-la? De que vale a lealdade sem alguém para compartilhar? É um bicho solitário, sem destino, escravo dos seus devaneios.

Ele dá a volta em si mesmo e se deita na porta de um bar, observando a multidão que corre pelas calçadas. Eis que surge uma menina linda: cachinhos loiros, boca rosada, vestidinho de pano rosa. Ela olha para ele e sente pena – o pior sentimento que um ser humano pode ter. Dá um sorriso e diz: “Pai, me dá uma coxa desse frango? Ela está uma delícia!”. A menina, sorrateiramente, joga-a no chão. Ele corre e come ali mesmo, em meio à lama da chuva forte de ontem. “Luiza, quantas vezes preciso dizer para não fazer isso? Vamos! Sua mãe está nos esperando pro jantar.”. A menina faz cara de choro, mas sabe que não tem chances contra a altivez do pai.

O morador de rua não fica triste, pois sabe que aquele sorriso vai ficar guardado por toda a vida, em sua memória. O sorriso de Luiza. Pela primeira vez não haviam percebido que ele era apenas um cachorro sarnento.