Mal podia esperar para vê-la de novo. Bater à porta e mergulhar naqueles olhos azuis que sempre o fascinou. O problema é que o sol ainda nem tinha nascido, e ele continua em claro. A noite, assim como tantas outras, transborda em sonhos e se mistura à música infame que a rádio toca no seu quarto. Ele se levanta, vai até a cozinha e, num lance de espelhos, vê suas costas desnudas. Não vê nada, mas a sensação de ter alguém atrás é real. Toma um copo d’água e pensa que essas sensações devem ser frutos da sua solidão. No reflexo do armário da cozinha, ele vê seu rosto marcado por olheiras e barba por fazer. Havia assumido essa cara-de-quem-não-quer-viver desde que ela viajou. Não fazia tanto tempo assim. Foi num domingo acalorado, disso ele se lembra muito bem. Mas o tempo não importa para quem desistiu de viver e prefere morrer de amor. Ainda na cozinha, puxa a cadeira de madeira e faz do desconforto o seu companheiro para o resto da noite. Os primeiros raios solares surgem pela fresta da janela e começa a esquentar levemente a face do homem, há pouco adormecido. Ele então abre os olhos lentamente e sente uma espécie de alívio. Havia chegado a hora. Pega o celular e com os restos dos créditos diz a ela: “amor, estou indo para aí. Me espera?”. A mulher diz que sim e completa: “não demora.”. Ele abre a boca e quando vai falar, ouve o sinal de desligado do outro lado da linha. No caminho, o homem olha pela janela do ônibus e depois para seu relógio, que continua a contar. Quando desce do ônibus seu coração bate ainda mais forte. Bate à porta da mulher com força, como se dissesse “estou aqui. Estou de volta.”. Lá de dentro vem uma voz que diz para esperar, pois, explica, estava acabando de se arrumar. Ele imagina aquele corpo nu que tantas vezes o levou ao ápice, à falta de ar num êxtase total. Por instinto fica excitado com o mistério. Como ela, a sua amada, estaria quando a porta abrir? A fechadura range, e os olhos dele se encontram com os dela. “Era tudo o que queria”, ele pensa que ela deve pensar. É quando ela diz “não vai entrar?”. Num golpe rápido a faca corre pela garganta da mulher cujas pupilas agora estão abertas, escancaradas. O sangue explode e mancha de vermelho escuro a parede. A porta bate. Lá fora, o sol continua a nascer.
14.10.09
12.10.09
A Vizinha
A vizinha ao lado é uma daquelas mulheres que não passam pela rua sem chamar atenção. Corpo escultural, que por debaixo da roupa (sempre preta), mal escondidas ficavam curvas delineadas e altamente sensuais. Posso dizer que tive sorte. Até porque não é sempre que uma vizinha surge do nada, bem no meio de um domingo sem graça, dia em que a vi pela primeira vez. Naquele momento, dei um sorriso desengonçado, e ela me respondeu com outro ainda mais tímido. Foi o início do surgimento de várias perguntas em minha antes tão pacata mente. Será que ela é boa de papo? Posso até um dia bater na porta dela e perguntar qualquer bobagem - isso se a minha já falada timidez permitisse, é claro. A minha adorável vizinha! O que será que ela faz? Quem afinal de contas é ela? Sinceramente não sei e nem tinha espírito de detetive o suficiente para descobrir mais detalhes da sua vida, tão marcada por um grande e desafiante ponto de interrogação. Da ponta da minha varanda dava pra ver que raras eram as vezes em as luzes do apartamento dela se acendiam. O preto era tão presente na vida da minha vizinha que isso só fazia aumentar a minha faminta curiosidade. Num raro dia de descuido e sorte, lembro-me bem, encontrei a minha vizinha de camisola preta, transparente, na varanda. “Mas o que faz uma pessoa ter tanta fissuração pela cor da solidão?”, pensava eu. Um dia tive a coragem de dar uma rápida olhada no lixo daquela mulher que, àquela altura, já povoava todos os meus sonhos (e pesadelos). O mistério é um ótimo tempero para os amantes. Pizza e (vários) cigarros de maconha foi o que encontrei ali. Não reconheci a maconha de primeira, mas me lembrei do meu primo, que no telhado da casa de praia da nossa família, não cansava de me oferecer o tal barato. Mas voltando... “O que faz uma mulher tão linda, amiga inseparável do escuro, viver de pizza e de maconha?”. Eram tantas perguntas que às vezes me faziam ter um ímpeto, ainda que passageiro, de bater a sua porta e dizer “que tal conversarmos?”. Nunca fiz isso, como você já pode prever. Sou previsível mesmo, confesso. Tinha de me contentar com as perguntas e todas as milhares de respostas que a minha criatividade produzia. Mas como tudo na vida tem um desfecho, eis o meu e o da minha adorável vizinha. Era o primeiro dia de inverno e eu cheguei do trabalho mais tarde do que costumava. Estava frio. Vi luzes brilharem já na portaria do meu prédio. Quando cheguei mais próximo percebi que eram sirenes. No chão, uma rachadura profunda por onde escoava um sangue vermelho flamejante. O porteiro não se fez de rogado e disse logo para mim: “sabe o que aconteceu?”. “Não”, disse eu. “A sua vizinha. Já foi! Pulou lá de cima e eu, daqui de baixo, só pude ouvir a batida seca.”. Tive uma tontura e subi rápido para o meu apartamento. Passei pela porta da minha vizinha, que pela primeira vez estava escancarada e lá de dentro dava para ver os uniformes dos policiais. Vinte minutos depois, minha campanhia toca. Um policial pergunta: “o senhor a conhecia?”. Olhei no fundo dos olhos do homem e disse que não. Completei: “tudo o que sei é que parecia ser uma pessoa maravilhosa.”. A minha vizinha morreu da mesma forma que a conheci: num piscar de olhos, na duração de um sorriso tímido. Já eu, bom, eu tinha o resto da vida para imaginar quem realmente ela era. A timidez, como sempre na minha vida, venceu.