Mal podia esperar para vê-la de novo. Bater à porta e mergulhar naqueles olhos azuis que sempre o fascinou. O problema é que o sol ainda nem tinha nascido, e ele continua em claro. A noite, assim como tantas outras, transborda em sonhos e se mistura à música infame que a rádio toca no seu quarto. Ele se levanta, vai até a cozinha e, num lance de espelhos, vê suas costas desnudas. Não vê nada, mas a sensação de ter alguém atrás é real. Toma um copo d’água e pensa que essas sensações devem ser frutos da sua solidão. No reflexo do armário da cozinha, ele vê seu rosto marcado por olheiras e barba por fazer. Havia assumido essa cara-de-quem-não-quer-viver desde que ela viajou. Não fazia tanto tempo assim. Foi num domingo acalorado, disso ele se lembra muito bem. Mas o tempo não importa para quem desistiu de viver e prefere morrer de amor. Ainda na cozinha, puxa a cadeira de madeira e faz do desconforto o seu companheiro para o resto da noite. Os primeiros raios solares surgem pela fresta da janela e começa a esquentar levemente a face do homem, há pouco adormecido. Ele então abre os olhos lentamente e sente uma espécie de alívio. Havia chegado a hora. Pega o celular e com os restos dos créditos diz a ela: “amor, estou indo para aí. Me espera?”. A mulher diz que sim e completa: “não demora.”. Ele abre a boca e quando vai falar, ouve o sinal de desligado do outro lado da linha. No caminho, o homem olha pela janela do ônibus e depois para seu relógio, que continua a contar. Quando desce do ônibus seu coração bate ainda mais forte. Bate à porta da mulher com força, como se dissesse “estou aqui. Estou de volta.”. Lá de dentro vem uma voz que diz para esperar, pois, explica, estava acabando de se arrumar. Ele imagina aquele corpo nu que tantas vezes o levou ao ápice, à falta de ar num êxtase total. Por instinto fica excitado com o mistério. Como ela, a sua amada, estaria quando a porta abrir? A fechadura range, e os olhos dele se encontram com os dela. “Era tudo o que queria”, ele pensa que ela deve pensar. É quando ela diz “não vai entrar?”. Num golpe rápido a faca corre pela garganta da mulher cujas pupilas agora estão abertas, escancaradas. O sangue explode e mancha de vermelho escuro a parede. A porta bate. Lá fora, o sol continua a nascer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário