7.11.06

A Esfinge

O vento sopra em seus cabelos, que se misturam à boca entreaberta, quase sedutora. Os lábios estão secos. Ela olha e nada vê. Não consegue mais distinguir entre os carros e as pessoas, pensando que realmente deve estar louca. Pensa que talvez por isso nunca a tenham compreendido. Talvez por isso as pessoas lhe pareçam mais complicadas do que verdadeiramente são. Para ela, o mundo sempre lhe foi uma esfinge. Os beijos e os abraços sempre foram frágeis, ao ponto de, num simples sopro do destino, acabar com amizades de anos, ditas “feitas para durar”. Nesse momento – pensa ela agora – “finalmente estou só”. Ela já não precisa mais da companhia de ninguém. Aliás, não-estar-sozinha sempre foi algo que ela sempre quis, mas que nunca teve. Ela está usando a mesma roupa da sua festinha de quinze anos: um vestido simples, cheio de babados, lantejoulas e esperanças rasgadas. Lembra-se perfeitamente da sua mãe fazendo um esforço enorme para provar de que tudo estava bem naquele dia. De que tudo estava como a novela das oito que ela “não perdia por nada nesse mundo”. No entanto, seu pai já não era mais o mesmo, sua irmã era magra e problemática e seu irmão, bom, esse só Deus sabia onde estava. Parecia uma família feliz. Realmente parecia. É incrível como agora as coisas passam rápido pela mente dessa garota. Ela pode até se lembrar do primeiro dia de aula, que outrora fez questão de esquecer. Tinha dezessete anos completados no mês anterior. Não tinha idéia na cabeça, não tinha crença num futuro. Foi quando, de repente, ela olhou para o lado e viu um menino moreno, de cabelos ondulados. Nada de especial, é bem verdade. O que a conquistou foram os olhos daquele menino, tão sinceros e transparentes. Foi assim que ela conheceu a paixão. Pela primeira vez o mundo lhe pareceu mais bonito, mais vivo e – porque não dizer? – mais convidativo. Teve medo. Sentimentos assim eram raros para ela e, exatamente por isso, resolveu dizer “não”. Já havia dito essa palavra outras vezes na vida, mas naquele momento era bem mais doloroso dizê-lo. Optou por abrir mão da sua felicidade e repetia num tom baixinho e monocórdio, tipo de confissão: “o medo é mais forte do que eu”. Pronto! Fim dos devaneios! A garota olha para o céu e vê as estrelas acima de sua cabeça. As luzes estrelares já não lhe parecem sem sentido, e agora elas passam uma sensação de caminho, como um destino que não se pode mudar, como um trem que não se pode parar. Ela sabe que é chegada a hora. Levanta os braços trêmulos e deixa o seu corpo na forma de cruz, num sinal evidente de adeus a um mundo que jamais conseguira entender, decifrar. É quando a menina descobre que a esfinge era ela mesma. Foi-se. Para nunca mais voltar. Lá em baixo as pessoas se perguntavam: “como pôde uma menina tão linda fazer uma coisa dessas?”. A resposta é que se pode ver a beleza que está na cara, mas jamais se pode ver a tristeza que está no coração.

20.10.06

Pontos Opostos

Quem é você que não me deixa dormir
Que não me diz para onde ir
Nem o que pensar, nem aonde chegar

Quem é você que fez do momento um instante
Que fez da vida um caminho distante
Sem avisar, Terra sem mar

Quem é você que não me deixa mentir
Que não me diz para onde ir
Nem o que saber, nem como fugir

Quem é você que alimenta a minha solidão
Que mata de fome a razão
Sem cara, sem pó, sem chão

Nós que somos diferentes
Pai e filho do que se diz impuro
Órfãos do vazio e de tudo
Reféns do que me parece sem curso

(Refrão)
Você que é sol e eu sombra
Você que é rio e eu onda
Você que é vinho e eu água
Você que é tudo e eu nada

Essa letra foi escrita especialmente para o meu amigo Johnny, um dos fundadores da Jade Zero, hoje, peça-chave da Banda The Cliftons. Sucesso, meu irmão!



21.9.06

A Foto



Esta é uma foto que eu sempre quis comentar. Para tanto, já que desde criança não consegui usar a pior arma do ser humano, que é a indiferença, sou sincero em dizer que não me responsabilizo pelo o que será escrito a partir daqui. Mas não me importa. Eu conheço bem uma arma tão fatal quanto as bombas americanas: a ironia. O sarcasmo. Olhe fixamente, caro leitor, para o rosto desta menina. Que lindo, não? Seu choro expressa um clímax que poucas pessoas no mundo – tenho certeza disso – puderam um dia alcançar. Não podemos ver as lágrimas, mas sabemos que elas estão lá, escorrendo pelo rosto cheio de emoção e de dor. É uma beleza sem precedentes, porque prova o que o homem é capaz de sentir e, principalmente, fazer. Deixa claro, então, que não há mais limites para nós. A insanidade tem essa virtude: ela é livre. Olhemos mais uma vez para a foto e, agora, preste atenção aos pés da menina. Estão descalços e parecem flutuar. São pés de menina-moça, capazes de fazê-la correr numa sublime agonia rumo a nenhum lugar. E a barriga dela, leitor? Veja só que maravilha! É fruto de uma magreza única, de um sofrimento que não se pode mais esconder. Como uma mentira, que de tão grande não se consegue mais sustentar. E o corpo? Totalmente desnudo, de uma leveza que somente o sofrimento pode dar. Note agora que os braços estão entreabertos, criando uma visão perfeita e verdadeira do desolamento humano, que nem Edvard Munch conseguiria expressar. Essa foto é capaz de deixar até mesmo o mestre Da Vinci para trás. Afinal, para quê pintar telas de anjos que expressam a alma humana, bem de acordo com os preceitos da “divindade” (note as aspas) ariana? Depois dela, para mim nenhum artista poderá, jamais, retratar a dor de maneira tão bela, tão perfeita, num caso raro de misto de realidade com insanidade. Ela é momento, um raro momento. Talvez seja o resultado de um segundo, ou até mesmo um milésimo de segundo, de um intervalo entre o fogo e a explosão de sentimentos, que essa menina tão divinamente conseguiu retratar. Não sei mais o que dizer, nem mesmo pensar, caro leitor. Serei sincero com você. Paro esses escritos por aqui, pois me sinto completamente desarmado. Nem mesmo a ironia me foi útil, confesso. Afinal, de que valem as palavras se elas de nada me servem agora? Não há nada mais para ser dito. Fico mudo, em silêncio. Sem palavras.

A foto – Até hoje é lembrada como uma das mais terríveis imagens da Guerra do Vietnã, tirada em 8 de junho de 1972, pelo fotógrafo Nick Ut.

A menina – Seu nome é Kim Phuc, teve metade do seu corpo queimado e passou por 17 cirurgias. Atualmente é Embaixatriz da Boa Vontade da UNESCO.

"Todas as pessoas deveriam ver essa foto, mesmo hoje, porque mostra claramente como uma guerra é terrível para as crianças. Você pode ver o terror no meu rosto. Basta ver a foto, para as pessoas aprenderem."
Kim Phuc, em entrevista para a BBC World Service.

20.9.06

Simplesmente Homem

A nossa canção já não toca mais, e o nosso filme preferido não foi premiado. Quando a porta bateu e deixou no ar o seu rastro de perfume, pareceu que tudo tinha mudado em apenas um segundo. Um segundo. Igual mesmo só ficou aquele meu sorriso amarelo, que sempre surge nas horas de tédio, minhas acompanhantes nas ruas escuras desta cidade solitária. É incrível como as cores, antes reluzentes e cheias de vida, agora se tornaram opacas e difusas, da mesma forma que ficou a minha mente naquele dia nublado. O dia em que dissemos adeus e fomos embora para novos lugares, procurar por outras aventuras. O cansaço e a mesmice nos venceram. Fomos vencidos pela monotonia. O amor tem dessas coisas, e o caminho possui suas armadilhas e seus caprichos. Justamente nós, que sempre acreditamos no destino, agora estamos assustados com o que ele nos reservou: uma vida literalmente a dois. Eu somente eu. Você, o que eu perdi. E se foi. E se fez lembrança. Já não durmo mais, a cama me parece grande, o quarto me parece apertado. Difícil é acordar e ver pela janela as pessoas sorrindo lá embaixo, como se nada tivesse acontecido. Como se a catástrofe que matou a minha esperança não tivesse mudado as coisas ao meu redor. Parece-me que somente o mundo que construímos ruiu, e com ele se foram as minhas alegrias e a minha paz. Acaso ainda queira saber, continuo no 753, meu telefone ainda é o mesmo e a nossa casa não mudou. Peço desculpas por esta carta melosa ao extremo. Melosa como toda carta de amor deve ser. E que ironia, não? Logo eu, que sempre fui discreto nos sentimentos, aproveito esta noite de solidão, para gritar por meio desta letra trêmula e nervosa: VOLTA! Não me importa o tempo que passou, muito menos os anos que perdemos. Não me importa! Até porque não tenho dúvidas de que o seu sorriso ainda é o mesmo. Capaz de me fazer sentir como um menino que precisa da mãe para estar seguro, como um artista que precisa da obra para ser jovem, e como um homem que precisa do amor para sentir-se homem. Simplesmente homem.

6.9.06

Quadrilhas

Quadrilha
Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

____________________________________________________________________________

Quadrilha (Século XXI)
Bruno Guerra

João nunca amou Teresa que odiava Raimundo
que “ficou” com Maria que teve um caso com Joaquim que traiu Lili
que não amava ninguém.
João foi ilegalmente para os Estados Unidos, Teresa virou prostituta,
Raimundo foi assassinado num assalto, Maria casou-se com um empresário rico,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com a sua carreira profissional
que fez dela uma socialite emergente, sócia e amante do marido de Maria.

Laço Vermelho-Puro

Sua mãe sempre foi autoritária. Tanto, que Roberta parecia que já nascera com aquele laço vermelho-puro amarrado aos seus cabelos. Tinha horas em que ela, quando ainda pequenina, queria ser igual às outras meninas de sua escola: diferente. Porém sua mãe nunca deixou que isso acontecesse, alegando razões que muitas vezes mostravam-se inconsistentes. Não tinha jeito, era sempre o mesmo laço vermelho que vencia a batalha, que apesar de amistosa, ia deixando marcas e um certo mal-estar na relação entre mãe e filha. O fato é que o tempo não pára e torna tudo obsoleto, ultrapassado. Roberta amadureceu e com dezessete anos decidiu que não mais usaria o tão “famoso” e odiado laço vermelho. Ela queria provar novas sensações, novos caminhos e, principalmente, fazer outras escolhas. Para isso, era essencial declarar a dolorosa decisão a sua mãe. Somente dessa forma Roberta poderia sentir o gosto do vento em seus cabelos escuros e sem vida. Somente assim ela poderia sentir-se, finalmente, livre. E assim aconteceu o desenlace. Depois de muitas lágrimas e discussões acaloradas, Roberta poderia usar o que quisesse nos seus cabelos. Tanto que eles subitamente adquiriram um valor que antes nunca tiveram, pois haviam se transformado num símbolo de novos tempos, de uma nova vida. Sua mãe morrera pouco tempo depois, e Roberta não chorou. A relação entre as duas já estava muito desgastada. E assim seguiu a vida da menina que agora era mulher: sem laço vermelho, sem cabelos presos e bem penteados. Depois dessa conquista, sua vida não foi um mar de rosas, é bem verdade. Mas para a liberdade, não há laço que segure, não há ideologia que amarre. Ser livre é tudo. Afinal, não há preço que pague a liberdade, nem mesmo o amor por uma mãe.

23.8.06

Vida Moderna

Resposta de um homem ao ser assediado sexualmente:

- Minha querida, eu não troco minha mulher por ninguém, muito menos por uma linda boneca inflável como você! Além do mais, sua bateria já deve estar acabando.

14.8.06

A Estrelinha e o Mundo Encantado

Era uma vez uma estrelinha que entrou para um mundo encantado, cheio de sonhos e sorrisos.

Com o seu brilho único, a estrelinha rapidamente se mostrou bem diferente de todas as outras. E foi assim que em meio a um universo cheio de penumbra e escuridão, ela apareceu e encantou a todos. Eram elogios e mais elogios, sorrisos e amizades feitas para durar.

A partir daí, as outras estrelas e suas amiguinhas diziam que depois dessa linda estrelinha, o mundo encantado já não seria mais o mesmo, pois o seu brilho reluzente foi capaz de transformar tudo e todos por onde passava. A estrelinha deixava o seu rastro.

Todos a olhavam com um certo deslumbramento, muitos até mesmo não acreditavam no que viam. Já as criancinhas, cujos olhinhos eram negros de inocência, acendiam de alegria no momento em que a estrelinha passava. De lá pra cá, de cá pra lá. Era assim que ela distribuía alegria e luz num mundo mais embaixo – não tão belo quanto o dela, é bem verdade – mas onde essas criancinhas moravam.

A nossa estrelinha teve sua glória. Ah, isso ela teve! Mas eis que num belo dia, quando o céu estava azul e cheio de nuvens fofinhas, uma surpresa apontou no ar: a nossa amiguinha havia descoberto que era uma estrela cadente e que deveria se preparar para o seu último vôo.

É bem verdade que foi um susto para ela, pois a estrelinha achava que o seu brilho duraria por toda a eternidade. Mas tudo bem, ela aceitou sem murmurar. Afinal, essa não era a primeira vez que isso acontecia no mundo encantado das estrelas.

No seu último vôo, na sua última passagem, ninguém viu, ninguém notou. Sem amigos e sem admiradores, a estrelinha passou e se apagou. Nessa hora, se pudesse fazer um pedido, ela pediria um caminho de volta para onde nasceu. Mas no mundo encantado isso não era possível: como todas as estrelas cadentes, o seu tempo havia passado.

E assim termina a história da nossa linda estrelinha cadente, da nossa pouco talentosa e esquecida estrela decadente.

28.7.06

Discurso número 1: Morte aos Homens das Cavernas!

Aproveito este momento de puro delírio, meus companheiros, para propor aqui a morte dos homens das cavernas! Sim! Exatamente aqueles que fazem da ignorância uma falsa inocência. Um golpe perfeito de pura hipocrisia. Eles não perguntam, não argumentam: simplesmente agem. Eles não lideram, não formam equipes: apenas andam em bando. Eles são exclusivamente eles.

Morte a todos que comem a carne e, num exemplo único de luta desleal e covarde, brigam pelo osso buco gorduroso e nojento. A agilidade que esses homens primatas possuem para isso é incrível, meus amigos e minhas amigas! É quase que uma devoção ao Santo Poder. A cristandade inabalável, onipresente e onipotente: poder, sucesso e dinheiro.

Não se enganem! No mundo existem vários homens dessa espécie. Em todo canto, em cada esquina. Eles correm e se aglomeram, uivam e matam. Sua formação grupal é simples: basta ter um pouco de ganância. Basta ter um pouco de nada e, na sua prepotência característica, dizer que tem tudo. Na verdade eles estão certos, companheiros! Porque eles têm o poder, e isso, ah... isso sim é tudo.

Para os homens primatas não existe pena! Matam e roubam sem dó nem piedade, e mesmo assim continuam livres. Até porque, para eles, a justiça é cega, mas não falha!

Mas eis que não podemos ser injustos. Não! Isso nunca! Nós temos que ressaltar suas qualidades. Esses homens sempre foram espertos. São seres peculiares, de rara astúcia, de inigualável inteligência. Que beleza, são esses primatas, meus amigos e minhas amigas! Eles não sabem o que querem, mas tem certeza do que não querem. Temos que bater as pedras, fazer barulho - o silêncio é uma forma de protesto - em homenagem a essa espécie superior e exclusiva. VIP.

Por fim, meus caros sonhadores, quero lhes confessar que também assim eu sou. Que também me calo diante do poder e da altivez dos homens das cavernas! Tenho de confessar: não é fácil ser Davi. É por tudo isso que sugiro, com a humildade de poucos: morte aos homens das cavernas! Morte aos homens das cavernas! Em nome do poder... Do sucesso... Do dinheiro... Amém!

29.6.06

Modernidade com Acidade

Virtual sem igual

Deletar sem apagar

Site sem insight


Minuto sem luto

Segundo sem além-mundo

Horda sem hora


Amor sem valor

Braços sem abraços

Sexo sem nexo


Arte sem desarme

Publicidade sem verdade

Texto sem contexto


Ditadura sem abaladura

Discurso sem excurso

Democracia sem burrocracia


Dinheiro sem freio

Cifrões sem razões

Luxúria sem cúria


Pecado sem culpado

Estigma sem dogma

Divino sem celestino


Morte sem aporte

Vida sem desmedida

Partida sem despedida

27.6.06

O Sorriso de Luiza

Cinza. Dia nublado. Ele anda pela rua sem rumo, numa andança em que dá voltas e mais voltas, num conflito entre as faixas de trânsito e a velocidade dos carros. A buzina, como antes era de praxe, já não acelera mais o seu coração. Os carros já não lhe parecem tão grandes assim. São anos de rua, anos de idas e vindas, olhares e passagens. Conheceu novos lugares, cruzou com muitas cadelas de rua e perdeu a conta dos genitores que deixou pelo caminho. Também, quem haveria de querer um pai assim? Que num momento de puro instinto, trepou e nunca fez amor.

Sim, ele já teve um dia os seus momentos de afagos, aquela comida gostosa que vem da mão de uma pessoa caridosa. Mas hoje em dia os restos de comida são raros, e a fome é freqüente.

Foi-se o tempo. Foi-se o tempo em que se arriscava pela noite. Até porque os seus passos já não possuem mais o vigor de antes, que o fazia correr pelas ruas, totalmente ensandecido pela efemeridade que só tem a liberdade. Liberdade de ir e vir, de chegar e de partir.

Perdeu a paixão pela noite, e o escuro não mais lhe serve como proteção. O olhar perspicaz o abandonou, e daí vieram os fantasmas, coisas de uma visão turva, que teima em lhe fazer tremer pelos bueiros onde costuma dormir.

Animal! Não pensa, não trabalha, não finge! Mas de que vale a sinceridade sem alguém para admirá-la? De que vale a lealdade sem alguém para compartilhar? É um bicho solitário, sem destino, escravo dos seus devaneios.

Ele dá a volta em si mesmo e se deita na porta de um bar, observando a multidão que corre pelas calçadas. Eis que surge uma menina linda: cachinhos loiros, boca rosada, vestidinho de pano rosa. Ela olha para ele e sente pena – o pior sentimento que um ser humano pode ter. Dá um sorriso e diz: “Pai, me dá uma coxa desse frango? Ela está uma delícia!”. A menina, sorrateiramente, joga-a no chão. Ele corre e come ali mesmo, em meio à lama da chuva forte de ontem. “Luiza, quantas vezes preciso dizer para não fazer isso? Vamos! Sua mãe está nos esperando pro jantar.”. A menina faz cara de choro, mas sabe que não tem chances contra a altivez do pai.

O morador de rua não fica triste, pois sabe que aquele sorriso vai ficar guardado por toda a vida, em sua memória. O sorriso de Luiza. Pela primeira vez não haviam percebido que ele era apenas um cachorro sarnento.

12.5.06

Rato

Duas e meia da manhã. A meia-luz do quarto dá a sensação de que só existe Damião no mundo. O silêncio reina insolente pela rua. Asfalto molhado. Bueiro entupido. Somente um rato que passeia pelos entulhos, à procura do que restou do dia anterior. Damião, já acostumado com a sua insônia, levanta-se da cama e vai até a janela. De lá, ele vê rato. Corre para a cozinha e pega um pedaço de pão velho e mofado que estava em cima da mesa. Não sabe o porquê, mas alimentar o rato lhe dá uma certa sensação de satisfação e alegria. Damião pensa no quanto esse bicho tem em comum com ele. Vidas noturnas, verdadeiros amantes da escuridão.
Damião volta para cama, que agora parece mais dura do que nunca. O quarto é quente, a noite é fria. Liga o rádio, mas nada parece soar bem aos seus ouvidos, nem mesmo a sua estação preferida, que há tempos não ouvia. Pensa em como as coisas mudam de figura. Sabe que já foi feliz um dia. Já sentiu o seu coração bater mais forte. Um dia. Hoje, é apenas um passante pela multidão. Sem estímulo, sem cor. Não pensa mais nos sofrimentos dos outros. Fez questão de esquecer os seus. Assim como a dor lhe ensinou a gemer, a pobreza lhe ensinou o egoísmo.
Damião teve uma infância de alegrias raras, sorrisos tímidos e invisíveis, de canto de boca. Quando não está em serviço, o lençol amarelo, manchado e desbotado é o seu companheiro. Isso sem tirar as putas que de vez em quando o visitam com a sua indestrutível prepotência e estupidez.
Damião já foi capaz de amar. Uma vez esteve apaixonado. Ela era linda, e a inocência que brilhava em seus olhos o conquistou. E são em noites como essa que Damião sente mais a sua falta. Falta dos beijos, dos abraços, do corpo quente que inebria e entontece. Somente ela foi capaz de fazê-lo pensar que a vida tem seus momentos inesquecíveis, que a vida pode ser algo realmente interessante. Mas, como tudo que passa pelo seu caminho, Damião destruiu. O mais engraçado é que ele fez isso com a mesma habilidade de quando saiu de casa, aos dezesseis anos, totalmente despercebido pelo pai e pela mãe.
Agora as horas passam e tudo continua o mesmo. Algum barulho na cozinha faz Damião pular da cama sobressaltado. Corre, passa pelo banheiro mal-cheiroso e chega a tempo de dar de cara com um outro rato cinza, muito maior que o anterior, bem em cima de sua mesa. Damião não se importa com isso. Na verdade ele se preocupa em não fazer o mínimo barulho ao voltar para o quarto. Dessa vez, sente que não está mais só e adormece.
Ao acordar, olha em direção à janela. Os primeiros raios de sol invadem quarto adentro. Veste uma blusa qualquer e uma calça jeans rasgada que estava no chão. Calça o chinelo havaianas e sai.
Na rua, a claridade cega seus olhos e dá uma sensação de leveza. Caminha calmamente em direção à banca de jornal e procura pelas manchetes do dia. “Crime premeditado. Deputado assassinado cruelmente quando saía da Câmara”.
Damião dá um sorriso tímido e invisível, de canto de boca, igual ao que costumava dar quando era apenas uma criança.

24.4.06

Um

Um a um os homens escrevem a história. Um a um os carros aceleram. Um a um os passos se repetem. Um a um os minutos marcam rostos. Um a um os sorrisos surgem e morrem. Um a um. Um a um os meninos não querem crescer. Um a um os amigos chegam e vão. Um a um os dias escuros alimentam a alma de muitos. Um a um os sorrisos alimentam a alma de poucos. Um a um. Um a um os meses passam. Um a um os anos começam e terminam. Um a um os pássaros cruzam o céu. Um a um os cartazes são colados. Um a um os cartazes são rasgados. Um a um. Um a um os gênios são esquecidos. Um a um os experimentos são desperdiçados. Um a um os centavos criam a riqueza. Um a um os filhos traçam seu caminho. Um a um. Um a um os beijos são marcantes. Um a um os amores nascem e renascem. Um a um os mortos são enterrados. Um a um os momentos são relembrados. Um a um. Um a um os ciclos se abrem. Um a um os olhos se fecham. Um a um dois se tornam um: um caminho, um objetivo, um desejo. Destino único. Um, um, um. Um a um.

13.3.06

A Mais Nova Contratação da Empresa

É engraçado como as coisas são. A vida parece sem novidades, até que chega um dia em que tudo muda. Muda para melhor, muda para pior. No meu caso, mudou para muito melhor. Isso porque era uma segunda-feira, daquelas que não se quer acordar, num desejo imenso de dormir até o outro dia. Pois bem, levantei moído, tinha trabalhado até tarde e estava exausto. Tomei banho, coloquei um terno qualquer e corri para o ponto de ônibus. Ao chegar à empresa, eis que fui chamado para comparecer ao gabinete da presidência. Foi uma surpresa para mim, afinal, poucas foram as vezes que entrei naquela sala fria do último andar. Entrei. Estava nervoso. O que deveria ser?

- É... Eu te chamei aqui, Sílvio...

- É Roberto, senhor.

- Certo. Quero lhe apresentar a Sofia, nossa mais nova contratação da empresa. Ela deve estar chegando. Quero que dê toda atenção a ela.

Nesse momento, a porta se abre. O mundo parou e a sala se coloriu. Lá estava ela: “a mais nova contratação da empresa”. Parecia que vinha em câmera lenta, exatamente como eu via nos filmes de amor quando era criança. Cabelos morenos esvoaçantes, ao sabor do vento. Pele lisa, de uma brancura sem igual. Olhos verdes, que inspiram um mistério, que todo homem adoraria desvendar. Fiquei extasiado com tanta beleza.

- Bom dia, senhores. Disse com um sorriso faceiro.

É incrível, mas só por essa frase eu achei Sofia muito simpática, numa perigosa mistura de menina e mulher. O mais engraçado é que achei que já a conhecia de algum lugar. Fazia tempos que não me interessava por alguém. Poucas vezes o meu coração tinha batido assim, descompassado e acelerado. Sofia era, sem dúvida, uma mulher especial.

- Olá! Disse todo desajeitado, ainda me recuperando do momento.

- Oi, Roberto. Prazer em conhecer. Disse Sofia oferecendo-me a mão.

Dei um beijo em sua mão e depois olhei para o seu rosto. Foi então que percebi a boca de Sofia: linda e convidativa. Eu sabia que minha sorte tinha mudado a partir daquele momento. Estava feliz pela presença daquela mulher que, como num passe de mágica, parecia capaz de colocar um ponto final na minha vidinha monótona e sem graça.
Mais tarde, Sofia, agora na mesa ao lado da minha, pergunta:

- Estava pensando... Você não me é estranho.

- Sabe que também pensei a mesma coisa, Sofia? Disse com certa empolgação. Essa era a hora de me mostrar um cara legal, de bom papo... Conquistador.

- Onde você estudou, Roberto?

- A minha vida toda estudei num colégio na esquina da minha casa: o Colégio Nova Era.

- Não acredito! Também estudei lá muito tempo! Disse ela com um ar de surpresa.

- Espera aí! Como é o seu nome todo?

- Sofia Boaventura de Menezes.

Meu mundo caiu. Era a Sofia Boaventura de Menezes! A garota irritante que adorava me chamar de apelidos só porque eu fui uma criança, digamos, rechonchudinha. Era ela a responsável pelos meus dias de pesadelo na escola.

- Nossa! Que bacana! Temos de marcar então para nos encontrar fora daqui. Acho que vai ser ótimo relembrar os bons tempos, não é mesmo?

- Não mesmo! Sabe como é: tenho mulher, filhos... Na verdade, uma relação extraconjugal não faz parte da minha religião. E mais: a partir de hoje a senhora por favor só me chame de Sr. Roberto, ok? Vamos manter tudo no campo profissional.

- Mas...

- Aliás, está um calor danado aqui. Vou descer para tomar um refrigerante bem gelado. Light, se quiser saber.

Desci rápido pela escada, com o rosto espantado de Sofia na minha cabeça. Antes de chegar à lanchonete, passei pela farmácia e não tive dúvida: fui direto para a balança.

- Nossa! Preciso emagrecer. Se ainda me chamasse de “bolinha”, ou até mesmo “rolha de poço”. Mas “chupeta de baleia”! Aí já era demais!

23.2.06

Papo Cabeça

- Cara, sei não, ó?
- Nem eu, bicho. Parece que agora não sei.... Enrolou de vez.
- Falô e disse, brou. Tá preto o bagulho, tá ligado?
- Tô.
- Mas beleza. A marmota deve tá nas últimas.
- Podes crê.
- Só...
- Só...
- Ei, chapa, e a mina?
- Na merma, mermão. Gata de responsa...
- Ô, e como.
- Vamo vê no que vai dá. Tamo só na curtição.
- Tô sacando...
- Sei não, mermão, mas parece que agora rola legal.
- Caraca! Show mesmo. Vê se fica na boa, pexe.
- Tá noiado porquê, rapá? Sai dessa, mano! Cê tá falando com “o cara”, sacou?
- Então tá beleza, brou.
- Só...
- Só...
- Ei, e aquele lance irado?
- Esquece. Já era...
- Beleza, chapa. Fui!
- Só...
- Só...

14.2.06

Notas de Sarajevo

As notas deslizam pelas teclas e dançam animadamente pelo piano, parecem brincar com os meus dedos nervosos. Já não estão mais separadas. A harmonia delas me contagia. Toco sem virtuosismos, porque não quero chamar atenção. Afinal de contas, a música é só minha. Minha forma de expressar com ressonância o meu protesto. Em minha mente as notas caem como pingos d’água em um lago profundo e obscuro. Desse jeito eu consigo me perder no espaço delimitado e cúbico em que me encontro. Já perdi a noção do tempo. Afinal, “tempo” é apenas um detalhe que eu insisto em esquecer, mas já a memória... Essa eu resisto até o fim, pois vejo que em tempos como este, de sobressaltos e soluços, tantas músicas são esquecidas, tantos versos apagados... Sou um produto da sensibilidade que a música me deu. Tenho um ouvido sensível que, quase sempre, consegue perceber razões sem nexo, ideologias sem fundamento. É nessa hora que perco a censura, e a música, antes baixa e discreta, ressoa por todo o quarto fazendo as teias de aranha balançarem e o chão vibrar. Soa como um grito de socorro. Recuso-me a desaparecer na poeira que sobe dos dias agitados! Prometo, Sofia, que vou continuar esperando pelos dias musicais que você uma vez ousou sonhar! O dia em que conseguiremos juntar as notas dissonantes e cantar, num canto uníssono, a harmonia que só a paz pode ter. Por enquanto, simplesmente toco. Ainda que já não ouça mais a melodia que sai do meu piano. Lá fora, as bombas ecoam fundo pelo ar.

4.1.06

A Primeira Vez Ninguém Esquece

- Calma, vai com calma, meu amor.

- Pode deixar. Nossa! Que sutiã ruim de abrir.

- Deixa que eu abro, amorzinho.

- Não, deixa que eu faço isso, minha gatinha manhosa.

- Qual o problema, Paulinho?

- Ah, sei lá... Quebra o clima, sabe?

- Bobagem. Pronto. Por que você ta com essa cara?

- Deixa pra lá. Vem cá vem...

- Ei, espera aí! Acha que é fácil assim, é?

- Não entendi.

- Não é porque eu tô nesse lugar com você, que eu vá aceitar tudo, entendeu?

- Mas isso é normal. Você não confia em mim?

- Não é isso, mas é que... Sei lá, acho que não é legal.

- Mas eu te amo, amoreco!

- Então prova!

- Provar? Agora? Tem certeza?

- Agora ou nada feito.

- Tá bom. Se lembra de quando eu disse “eu te amo” pela primeira vez? Pois é, foi a mais pura verdade.

- Jura?

- Juro.

- Que foi agora?! Que que tá acontecendo com você Roberta? Que saco!

- Ai, não fala assim comigo...

- Não chora, fofinha do papai.

- Você nunca teve paciência comigo.

- Como assim “nunca teve paciência comigo”?

- É que eu sou... Bom, você sabe.

- Certo. E qual é o problema? Você tem que se soltar, desestressar.

- Me diz. Você tá acostumado com mulher fácil, não é? Seu cachorro!

- Calma aí, agora eu que fiquei chateado. Cachorro não! Homem sim!

- Viu, não disse que você é machista?

- Não sou nada!

- É sim!

- Não sou, não sou e pronto!

- Quer saber de uma coisa? Pra mim chega, tá? Vou embora!

- Calma! Vamos conversar.

- Cadê a minha blusa? Vou acender a luz.

- Espera...

- Ei! Pode colocar isso de volta, Paulo!

- Mas meu amor...

- Não me chama de “meu amor”, seu cachorro!

- Já falei que eu não sou cachorro! Pode parar por aí!

- Sai, sai daqui, seu cachorro! Não quero mais nem olhar pra sua cara!

- Ei! Olha como eu estou. Não faz isso! Espera!

- (...)

- Roberta, abre essa porta! Quer que eu seja preso, é?

- (...)

- Abre logo, Roberta! As pessoas vão ver. Já pensou se alguém descobre que nós viemos para cá? Acho que você não ia querer, não é mesmo? Já to até vendo a manchete: “Namorado tarado é pego com a mão na maçaneta”!

- (...)

- Abre, porra! Robertaaaaa!

- (...)

- Olha, tá saindo um carro no apartamento ao lado! Eles vão me ver. Abre logo! Caramba, agora complicou de vez.

- (...)

- Seu Herculano, o senhor por aqui...

- Cadê a minha filha, seu cachorro?

- Calma, não é nada disso que o senhor tá pensando. É que eu trabalho aqui...

- Deixa de mentira, rapaz! Quem é que trabalha nu? Só se você fosse ator pornô, o que tá difícil como eu posso ver. Vai logo dizendo: cadê a minha filha?

- Tá bom eu vou contar a verdade. Eu tô aqui com uma mulher, mas não é a sua filha.

- Eu sabia! Você não presta mesmo! Bem que eu disse pra biscate da mãe dela, mas ela não tava nem aí mesmo, só pensava no amante.

- Esquece o que passou, seu Herculano. Aliás, parece que o senhor já está se recuperando da separação, hein?

- Ei! Quem é você pra falar assim comigo? Cadê o respeito, garoto?

- Desculpa, seu Herculano. Olha, vamos fazer o seguinte: eu deixo a sua filha em paz, e o senhor me tira dessa. Que acha?

- Eu não devia, mas entra logo aqui no carro.

- Valeu, seu Herculano! Mãe?! O que a senhora tá fazendo aqui?